quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Tertú e o Lago

Texto realizado para composição do projeto final de Imagem Técnica I. Além do texto que segue, foram também realizadas intervenções urbanas nos viadutos da Av. Antônio Carlos e um registro audiovisual de todo o processo de produção. Projeto realizado em parceria com o artista DagShow Silva, também belorizontino.

Partamos do principio de que toda realidade é subjetiva, maleável à nossa vontade, mutável, e que, aplicando-se a força, a pressão, na medida certa e necessária, o mundo se transforma, a vida emerge do caos que norteia nossos dias, e o futuro parece reluzir com o sol da possibilidade. Imagine que todo o mundo, toda a nossa realidade vivente, todos os nossos gozos e nossas dores, sejam um lago. Plano, imóvel, pesado. A água não reluz a energia do sol, mas a traga sedenta com o seu negrume líquido. Tertú, tem oito anos. Hoje ele não pôde ir à aula, seu pai homem correto, honesto e trabalhador, acordou com dores no corpo e não pôde ir trabalhar. A família de Tertú, assim como a maioria da população mundial, depende exclusivamente do suor do trabalho para sobreviver, comer, se vestir. O pai de Tertú trabalha como pintor de paredes. Ele pinta letreiros de lojas, paredes de obras, faixas de amor, formatura e eleição. Acorda às 5 da manhã de segunda à segunda, dá bom dia ao sol, toma seu café simples e modesto, passado pela esposa mirrada e tímida, que olha a tudo e a todos com um medo tão primitivo que parece ser algo nato dela e não herdado da vida. Tertú só encontra com o pai doze horas depois de tê-lo visto sair pela porta durante o amanhecer. Ele traz as roupas sujas, coloridas, o ombro caído e um esgar cansado nos lábios. Tertú conhece bem o pai que o criou. Sabe das manias, dos trejeitos, dos franzir de sobrancelhas, do coçar da garganta. Tertú adora o cheiro de tinta que chega com o pai, lhe traz uma tranquilidade que ele só irá reconhecer quando sentir, pela ultima vez, o cheiro de tinta e aguarrasa ao caixão do pai baixar na terra com a infinitude da morte. Tertú não conseguira ficar em casa com o pai deitado na cama, acamado, fraco, indefeso, com o cheiro do ranço da cama de um doente. Tertú descobrirá também que foi aquela a primeira vez que o horror passou pela sua mente. Seu pai estava doente, com dores no corpo, precisava apenas de repouso, mas para Tertú que não encontrava no ar o cheiro que sempre o reconfortava, que lhe dava chão, calor e amor, aquilo era a morte. Ele, com seus olhos, inocentes e crus, quase podia ver o contorno da morte na cortina puída que descia ao lado da cama do pai enfermo. Se horrorizava com as nesgas de sol que passavam pelos seus rasgos e iluminavam o rosto de seu pai com cautela, como se o céu ainda estivesse tímido em levá-lo. Ao encontrar o pai na situação em que estava e a mãe com o horror estampado em cada respiração e resfolego, Tertú saiu de casa de supetão, decidido, perdido, e louco. Já se percebia nele toda a fúria da personalidade sólida que viria a ter e que respaldaria seu caráter quando fosse o seu caixão a ser baixado na terra. Andou sem rumo, confundindo o chão com as lágrimas e a loucura com o sonho. Ele queria com toda a força que possuía no ímpeto dos seus oito anos ser capaz de fazer alguma coisa, de mudar uma situação que lhe parecia irreversível e inevitável. Ao seu pai restava a sorte, o destino, pois os meios do qual o mundo é cheio, não eram acessíveis à eles, habitantes limítrofes de uma sociedade à beira eterna da evolução. Tertú andou até sentir o solo mudar debaixo de seus pés, a grama crescer e pinicar-lhe a panturrilha e o sol raiar sobre sua cabeça. Ele sentou na primeira pedra que achou, enfiou a cabeça entre os joelhos e deixou-se soluçar, pedir, orar, por qualquer coisa, qualquer solução, qualquer impossível. Por que ELE não podia fazer nada? Ele olhou para as mãos. Ele tinha mãos capazes, com cinco dedos inteiros, que brincavam na terra, construíam fortalezas de pedrinhas e pintavam desastradamente a parede externa da casa. Essas mãos sempre tão úteis e amadas por Tertú, receberam de uma só dose todo a aversão e loucura que receberiam na vida. Elas eram falhas e incapazes. Tertú não sabia pintar, nem trabalhar, só brincar! O que seria dele e de sua acuada mae? Tertú apertou a terra do chão com toda a força que possuía, a terra foi expulsa de reduto tão apertado e as unhas se cravaram na carne. Ele chorou. De dor, de desespero, de incapacidade. Sentiu-se doente, mas não como o pai. Sentiu-se doente de loucura, sentiu-se doente por conter no peito de oito anos uma angústia atemporal. O céu estava lindo, azul. Azul da cor dos olhos de sua mãe, límpido e puro. Mas forte, implacável e decidido. Quando seu olhar baixou sobre a Terra, ele se encontrou sentado na beira do lago que seu pai o levava, quando dava, para pescar piabas.
O lago parecia um espelho verde-musgo. Nem mesmo uma brisa quebrava sua solidez. Tertú nunca vira o lago assim, tão quieto e parado. Parece que havia pescado todas as piabas, deixando o lago seco de vida e futuro. Tertú não gostava da superficie petrificada que via. Seu interior e âmago estavam em tal rebuliço de revolta que ele queria que o mundo encenasse sua dor. Queria que lágrimas de gelo caíssem do céu, que a copa das árvores se destroçassem com o vento, que as montanhas tremessem e se abrissem em abismos infinitos de magma e rocha, tal qual como o inferno.
Toda a sua loucura, toda a sua dor, seu desespero, encontraram o ponto de escape na coisa mais simplória da história do mundo, uma pedra. Tertú não hesitou, não respirou, se decidira. Não consegui ver saída palpável para a situação de seu pai, já havia confiado o destino à fé que sua mãe lhe educara a ter, a fé na qual os pobres, os enfermos, os sofridos, os desesperançados, encontram forças para seguir em frente com a vida cruel que levam. 

Tertú sentiu o calor da pedra por apenas alguns segundos, enquanto seu corpo se esticava para arremessá-la o mais longe de toda a sua loucura possível. A pedra voou o mais longe que já havia voado pelas mãos de Tertú, mas não alcançou nem 2/3 daquela imensidão espelhada.

A pedra caiu na água com ímpeto juvenil de uma criança de oito anos que ainda acredita na vida, apesar de temer a morte, e que, na inocência cálida de não conhecer o mundo, ainda confia no melhor, no futuro, e na força que existe numa simples pedra de ondular a superfície de um imenso lago.