Quando cheguei naquela cidadezinha de interior, me encantei por aquele céu límpido e imenso. As noites eram iluminadas pelo brilho de incontáveis estrelas mesmo quando a lua resolvia tirar férias.
Os moradores eram simples, puxavam o
r e chamavam um ao outro pelo primeiro nome. Extremamente receptivos, sorriam até mesmo aos estranhos estudantes que lá chegavam, ansiosos para exercerem a nova função de universitários.
Era estranho viver em uma cidade tão pacata em relação à Grande BH. Trânsito não parecia ter chegado lá ainda. Faixa de pedestre vi somente uma e em uma rua interditada há tempos atrás. O shopping era uma grande loja que vendia desde sapatos, botinas, relógios, meias à calcinhas, brincos e roupas de cama.
Foi naquela cidade de interior que aprendi a valorizar a calmaria de um dia no qual não se escuta uma buzina sequer. Naquela cidade, tão subestimada por olhos estrangeiros, residia um pouco do segredo para a felicidade: calmaria.
Calmaria para andar, calmaria para falar, calmaria para sorrir. O sorriso dos
nativos - como os universitários chamavam os moradores - era lento, parecia surgir de dentro da alma com manha, preguiçoso em vir à tona, mas fiel em seu objetivo. O riso deles era fácil e aconchegante. Riso de gente que não sabe o significado de estresse. Delicioso. Lá eu me estressava com a lentidão das coisas.
Todos os
nativos possuíam uma certa arte no falar. Vindo deles era natural, correto, esperado.
Eles não só puxavam o
r, mas possuíam seu próprio modo de organizar as sentenças. Tinham um gosto especial pelos pronomes oblíquos. Só depois de muito tempo fui perceber que falávamos de modo diferente, de tão natural era o sotaque vindo deles.
A expressão que me chamou atenção adveio de uma situação peculiar.
Lá estávamos nós, universitários mais que dispostos - não pergunte a que -, socializando em uma reunião - vulgo farra -, quando uma das nossas amigas
nativas veio reclamar das investidas de um certo rapaz.
- Tô eu lá, quietinha na fila do banheiro, o sujeito já vem me encostando - ela reclamava.
Aquela expressão me assustou. "
Me encostar". Peculiar. Pude imaginar perfeitamente o certo rapaz segurando-a pelos braços como se ela fosse uma boneca de trapos e a encostando na parede, como se encosta uma vassoura, ou uma tábua, ou qualquer outro tipo de coisa que precise ficar encostada para ficar em pé - que, de certa forma, era o caso dela depois das diversas ingestões alcoólicas.
Depois disso percebi que todos aqueles sorrisos que me receberam de modo tão caloroso, falavam todos do mesmo jeito: vou
te encostar, chegou
me encostando...
E por mais que a imagem da vassoura encostada na parede sempre me viesse à mente quando ouvia essas expressões, eu conseguia abstrair um sentido diferente entre
te encostar e encostar
em você. A primeira era específica ao contato de uma pessoa com a outra.
Os
nativos conseguiram mudar a estrutura da sentença e com isso atribuir um novo significado a ela. Um significado específico atribuído à uma situação específica num contexto específico.
Era lindo. Era arte no falar.
E lá ficava eu, nas reuniões sociais, não querendo que alguém encostasse
em mim, mas que alguém
me encostasse.