O vento cortava. Chilreava.
Parecia uivar o canto do frio.
Bagunçava meus cabelos já despenteados e entrava pelas mangas da minha jaqueta surrada.
Olhei o relógio. Ela estava cinco minutos atrasada, como sempre.
O atraso que antes me arrancava sorrisos, hoje gerou um esgar.
Dei um trago no cigarro e apertei mais o copo de café em minhas mãos, na esperança de esquentá-las.
Obviamente em vão. Seria mais fácil elas o esfriarem.
O cigarro apagou, é claro. Onde estava o isqueiro?!
Enquanto o procurava, sua mão tocou meu ombro. Lá estava ela.
Bonita, como sempre. Mas não tão bela como antes.
Decepção muda muita coisa.
Um sorriso torto cresceu em meus lábios, contrariados.
Peguei em sua mão, sempre mais quente que a minha, esperando o alívio que aquele toque gerava surgisse em meu corpo. Nada. Os ombros continuaram tesos como estavam há um longo tempo.
Decepção muda muita coisa.
Iríamos ver um filme no cinema do bairro. Nada demais, apenas uma distração durante a semana.
Fomos andando, sua mão na minha, suas palavras ao vento. Antes o que escutava com tanta atenção, agora mal chegava aos meus ouvidos.
Decepção muda muita coisa.
Parecia utópico poder andar de mãos dadas com ela, pelas ruas da minha cidade, com a mente tranquila.
Um sonho, antes muito almejado, se tornando realidade.
Mas, ou a realidade possuía um gosto mais suave que os sonhos, ou os sonhos haviam mudado.
Decepção muda muita coisa.
Quando chegamos ao cinema, fomos logo para o fundo, mais afastado. Queríamos namorar à luz da projeção. Pensei que meus lábios rasgariam ante a tensão do sorriso que eu esperava surgir naquela situação. Nada.
Decepção muda muita coisa.
Apagaram-se as luzes. O cinema estava relativamente vazio, para nossa sorte. Poderíamos ficar à vontade.
Nunca havíamos conseguido ver mais que quinze minutos de filme antes. Quando nos juntávamos a ânsia pelo toque, pelo beijo, era forte demais. Colocávamos o filme e, logo depois, já o havíamos esquecido entre nossos beijos, nossas conversas e nossos risos.
Hoje não. O filme transcorreu calmamente. Trocamos algumas carícias, apenas.
Decepção muda muita coisa.
Quando saímos, o frio parecia ainda mais cortante. Nos abraçamos e seguimos pela calçada, corpos ainda entrelaçados um no outro. Mas, não pela vontade, sim pela necessidade.
Ela iria dormir na minha cama. Outra utopia. Dormir nos braços do nosso amor.
Chegamos em casa. Comemos, trocando palavras aleatórias. Fomos para cama.
A noite com a qual eu sonhava aconteceu, mas, mais uma vez, a realidade pareceu atenuar seu gosto.
Ela não dormiu nos meus braços e eu não me importei. Quando fechei os olhos, minha mente estava vazia. Não me assustaria se meu coração também estivesse.
Decepção muda muita coisa.
Acordamos. O sono a deixava sexy, mas não tive vontade de prová-la logo de manhã.
"Bom dia, flor-do-dia."
Tomamos banho. Seu corpo era lindo ensaboado, mas, ainda assim, não tive vontade de prová-la.
Decepção muda muita coisa.
Enquanto observava ela se vestir, uma resolução começava a se formar em minha mente.
E, pela sua expressão, a mesma resolução parecia se formar na dela.
Não estávamos tristes.
Era um alívio finalmente aceitar o óbvio. Obrigada.
O plano era passarmos o dia à-toa, apenas entre nós, nossos beijos, nossos risos, nosso amor.
Mas eu via a pergunta, que pairava em minha mente, no rosto dela: pra que?
Decepção muda muita coisa.
Ela me sorriu um entendimento. Eu sorri de volta. As lágrimas não surgiram como era de se esperar.
O sorriso era sincero, a calma também.
Levei-a até a porta.
Beijei suas mãos, seus braços, seu pescoço, suas bochechas, sua testa, seu nariz. Beijei seus lábios.
Os lábios mais perfeitos que já tocaram os meus, os mais cálidos, os mais macios. Um único beijo.
Sorrimos.
"Até amanhã." Uma mentira dita quase em uníssono.
O amanhã nunca veio.
Não era preciso. Nosso amor havia ficado no ontem, e o hoje apenas comprovava o óbvio: os amores também podem falir.
E o nosso faliu.
Decepção muda muita coisa.