domingo, 15 de dezembro de 2013

Perco-me em labirintos a procura de um assunto. Qualquer assunto.
Falaria de césares e párias, de montanhas e cachoeiras, de arte e de futilidades, discutira polêmicas sem nem ter opinião formada, leria artigos do que não concordo e escutaria bandas das quais não gosto.
Um especialista me tornaria sobre o que quer que quisesse conversar.
Só para sentir que, durante nossa pequena troca de palavras, sua atenção está em mim.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Certa vez me apaixonei pelo impossível.

Sabe aquele impossível realmente impossível? Que mesmo depois de noites em claro, lágrimas vertidas, cartas reviradas, conselhos misturados e maços e maços de cigarros fumados não tinha se tornado menos impossível? Um impossível que não tem nem por onde começar a torná-lo possível? Um impossível por natureza, como um pássaro que nasce pássaro e não lhe é possível virar morcego?

Então, exatamente esse tipo de impossível que lhe revira a alma e a cama junto, que lhe ocupa a mente e a vida, que lhe cansa a vista e os dias, que lhe mata aos poucos e incessantemente.

Creio eu, tenra em minhas experiências, que o impossível é, por si só, apaixonante. Ora, sem amores impossíveis onde estaríamos agora? Em uma sociedade sem poetas, sem artistas, sem tragédias. Na qual não se sente a angústia que é não poder tocar a pele que tanto anseia, não sente a dor, quase tangível, de não poder beijar os lábios que tanto deseja.

Vivemos em um mundo imediatista. Tudo é para agora. Tudo. Paciência parece ser virtude dos tempos em que minha avó precisava andar 5 horas de carroça para ver seu pretendente, 5 horas que passaria suspirando e esperando ansiosamente.

Não existe mais aquele jogo da sedução, do conquistar, do se encantar. Não se brinca mais com os olhares, nem com os bilhetes. O galante, não mais galanteador, vai direto ao ponto. Aborda seu amor de modo direto, inquisitivo e imediato. É quase um "agora ou nunca" do amor, "ou vai ou racha".

Nesse mundo completamente deturpado de sentimentalismo, o impossível é exatamente aquilo que grita à alma. Que faz a diferença. Que dá um gostinho de quero mais aos momentos.

Você sorri involuntariamente quando troca um olhar com o impossível. Um novo sol parece nascer no seu dia quando tromba com o impossível no corredor. Você quase ri em júbilo quando escuta o impossível gargalhando deliciosamente. Você pega o ônibus errado só para sentar ao lado do impossível na volta pra casa.

Como não se apaixonar pelo impossível? Não sei. Creio eu que seja impossível.

Me é impossível sentir seus lábios espertos, me é impossível passar os dedos pelo seu cabelo misterioso, me é impossível sorver do perfume da sua própria pele, me é impossível saber o gosto do seu suor, me é impossível rir da sua nua timidez sob meu olhar perscrutador.

Você me é impossível. E por isso, talvez apenas por isso, me seja tão apaixonante.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Felicidade requer coragem.

Infeliz é aquele que mergulha nos próprios medos.
Que abraça a inércia como uma velha amiga.
Que se acomoda nos lençóis do fracasso para uma soneca eterna.
Que deixa o tempo apagar os sonhos mais proibidos.
E que diz sentir o que não é capaz de demonstrar.
Não se sinta melhor nem pior que ninguém.
Você é único. O que você tem a oferecer é único.
Seus olhos só você têm, seu olhar, seus lábios, seus gestos e trejeitos, sua história de vida, sua forma de raciocínio, suas manias, seus sonhos e ambições.
Você é um conjunto único, completo e capaz. Perfeito em sua complexidade. Infindável em seu potencial.
Jamais existirá outro ser igual a você por mais parecido que possa ser.
Então, valorize-se. Valorize ao outro. Valorize as diferenças.
Não faça comparações. Não permita ser comparado.
É impossível comparar uma unicidade com a outra.
Não seja medíocre ao querer se encaixar em padrões tão superficiais e sem significados. Padrões temporais e inconstantes. Padrões que ferem, discriminam, insultam, repelem, afastam.
Seja único. Nem melhor, nem pior.
Apenas único.
Você não se cansa?
Você não se cansa das futilidades? Das mesquinharias? Do consumismo exacerbado?
Do ciclo vicioso em que vivemos de: não termos o bastante e por isso não sermos o bastante?!
Você não se cansa dos mesmo assuntos? Do mesmo enredo que sua vida segue, seja no ponto de ônibus, na fila do supermercado, na academia, na livraria?
Você não se cansa de viver com uma viseira moral e criativa? De ser incompleto culturalmente?
Você não se cansa de sobreviver através dessa sociedade ao invés de viver seus anseios como bem entender?
Você não se cansa de ser medíocre? De ser covarde?
Você não se cansa de aceitar?
Você não se cansa de ser apenas um expectador em sua própria vida? De não ter forças nem para trocar de canal?
Você não se cansa de não viver? De não sentir? De não ser?
Você não se cansa?

domingo, 8 de dezembro de 2013

A brisa soprava suave.
A Kombi continuava estagnada.
E eu, ali, continuava diferente. 
Não simplesmente diferente no sentido de ser diferente.
Mas no sentido de continuar diferente, mudando à todo momento.
Constância na mudança.
O mudar sendo constante.
O não-permanecer constante.
A constância na mudança.


Sempre serei eu mesma, mas nunca serei a mesma.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

A angústia parece ser um estado de espírito inerente ao ser humano.
Toda vida parece ser angustiada.
O homem possui um sofrimento que advém da sua própria existência e consciência de si mesmo.
Consciência de que, no final das contas, não é tão diferente assim do cachorro que vaga pelas ruas sem rumo.
Consciência de suas limitações terrenas quando vê um pássaro voando sobre sua cabeça.
Consciência de que por mais que faça, por mais que grite, por mais que crie, nada mais é que um indigente nas páginas da História.
E que, até mesmo a História, sua própria criação, nada mais é que finita perante ao Universo.
A insignificância do homem perante ao Todo é tão aterradora que o homem vaga pelo mundo angustiado.
Em sua busca desenfreada pela significância, o homem cria deuses que justifiquem o que lhe foge à compreensão, constrói sistemas que lhe deem um pseudo-objetivo de ser, inventam novas tecnologias no intuito de se sentir mais dono de sua pequena verdade.
O homem entra em consonância com o Universo somente através da Arte.
Quando toca, quando pinta, quando esculpe, quando canta, o homem se torna um conduíte de toda a grandeza do que é exterior à ele.
Mas, ainda assim, até mesmo a Arte, que é a forma do Universo se mostrar perante à nós, à nossa insignificância, se torna obsoleta ao ser tão finita quanto nossa própria existência.
Chegará o tempo no qual o homem deixará de existir. E o Universo nada mudará com isso.
O homem, em sua vã ignorância perante à grandeza do Universo, é tão efêmero quanto a vida que julga comandar.
O homem é o único ser conhecido por ele mesmo que vive com consciência de viver, que atribui significado à sua própria insignificância.
E essa consciência o angustia, pois ele é sem ser.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Agenor vivia em estado constante de agonia.
Gemia ante a escuridão que ocupava sua mente.
Debatia-se contra as amarras invisíveis que cegavam sua arte.
Parecia que a própria Terra prendia sua inspiração na lava que continha em núcleo.
Desde que seus pensamentos e anseios se viram livres de sua paixão por Ella, ele estava em um constante hiato.
Era um hiato de paz. Calmaria. Plenitude.
Um hiato de arte.
As Artes pareciam tê-lo abandonado à própria sorte. Vagando sem rumo em um mar de desesperança.
Não conseguia mais externar a beleza do que sentia.
Não conseguia mais descrever o que antes enxergava na vida.
A vida não deixara de ser bela. Ele apenas não enxergava a beleza que nela havia.
Seus olhos estavam daltônicos devido a sua mente sã. 
Sã da embriaguez da paixão.
Agenor não era infeliz, muito menos feliz. 
Ele vivia em hiato.
Hiato em não amar.
Era um boêmio sem dinheiro para o drink da esquina, era um ditador sem a frieza do poder que continha, era um camaleão no vácuo do espaço - incapaz de se fundir ao fundo de astros.
Agenor era um artista sem paixão.
Uma vela apagada em plena escuridão, sozinha, fria e sã.
O drink que bebia era fiado, a arte que queria era perdida.
Ele olhava o copo da embriaguez, querendo beber dali o que bebia da paixão.
Mas como não era possível:
- Garçom, me traz mais um copo.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Crônica I

Quando cheguei naquela cidadezinha de interior, me encantei por aquele céu límpido e imenso. As noites eram iluminadas pelo brilho de incontáveis estrelas mesmo quando a lua resolvia tirar férias.
Os moradores eram simples, puxavam o r e chamavam um ao outro pelo primeiro nome. Extremamente receptivos, sorriam até mesmo aos estranhos estudantes que lá chegavam, ansiosos para exercerem a nova função de universitários.
Era estranho viver em uma cidade tão pacata em relação à Grande BH. Trânsito não parecia ter chegado lá ainda. Faixa de pedestre vi somente uma e em uma rua interditada há tempos atrás. O shopping era uma grande loja que vendia desde sapatos, botinas, relógios, meias à calcinhas, brincos e roupas de cama.
Foi naquela cidade de interior que aprendi a valorizar a calmaria de um dia no qual não se escuta uma buzina sequer. Naquela cidade, tão subestimada por olhos estrangeiros, residia um pouco do segredo para a felicidade: calmaria.
Calmaria para andar, calmaria para falar, calmaria para sorrir. O sorriso dos nativos - como os universitários chamavam os moradores - era lento, parecia surgir de dentro da alma com manha, preguiçoso em vir à tona, mas fiel em seu objetivo. O riso deles era fácil e aconchegante. Riso de gente que não sabe o significado de estresse. Delicioso. Lá eu me estressava com a lentidão das coisas.
Todos os nativos possuíam uma certa arte no falar. Vindo deles era natural, correto, esperado.
Eles não só puxavam o r, mas possuíam seu próprio modo de organizar as sentenças. Tinham um gosto especial pelos pronomes oblíquos. Só depois de muito tempo fui perceber que falávamos de modo diferente, de tão natural era o sotaque vindo deles.
A expressão que me chamou atenção adveio de uma situação peculiar.
Lá estávamos nós, universitários mais que dispostos - não pergunte a que -, socializando em uma reunião - vulgo farra -, quando uma das nossas amigas nativas veio reclamar das investidas de um certo rapaz.
- Tô eu lá, quietinha na fila do banheiro, o sujeito já vem me encostando - ela reclamava.
Aquela expressão me assustou. "Me encostar". Peculiar. Pude imaginar perfeitamente o certo rapaz segurando-a pelos braços como se ela fosse uma boneca de trapos e a encostando na parede, como se encosta uma vassoura, ou uma tábua, ou qualquer outro tipo de coisa que precise ficar encostada para ficar em pé - que, de certa forma, era o caso dela depois das diversas ingestões alcoólicas.
Depois disso percebi que todos aqueles sorrisos que me receberam de modo tão caloroso, falavam todos do mesmo jeito: vou te encostar, chegou me encostando...
E por mais que a imagem da vassoura encostada na parede sempre me viesse à mente quando ouvia essas expressões, eu conseguia abstrair um sentido diferente entre te encostar e encostar em você. A primeira era específica ao contato de uma pessoa com a outra.
Os nativos conseguiram mudar a estrutura da sentença e com isso atribuir um novo significado a ela. Um significado específico atribuído à uma situação específica num contexto específico.
Era lindo. Era arte no falar.
E lá ficava eu, nas reuniões sociais, não querendo que alguém encostasse em mim, mas que alguém me encostasse.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Desfaçam-se de seus pré-conceitos.
Limpem-se de suas pré-concepções.
Livrem seus olhos do véu da incompreensão.
Abram a mente.
Não busquem igualdade, busquem aceitação das diferenças.
O outro não é um espelho no qual deve se encontrar.
O outro são as possibilidades de caminhos que você poderia ter tomado. 
O outro lhe é incompreensível por não ser você, não por ser o outro.
Aceite o medo que tem do desconhecido e seja corajoso para desbravá-lo de braços abertos.
Tenha sede pelo desconhecido e aceite que, somente nele, a Redenção se encontra.
A tristeza que me toca não advém da impossibilidade de futuro.
Já me acostumei com o nosso impossível. Vivo dele.
A tristeza que me consome, não deixa meus risos virem à tona, é mais cândida, profunda.
É uma dor crônica, não latente.
Todas as sensações se adormecem nesse lago opaco de lamúrias.
Lamúrias não pela impossibilidade. Já lhe disse, vivo dela.
Lamúrias por não ter externado toda aquela loucura que sentia.
Lamúrias por não ter mostrado ao mundo o quanto te amar foi belo.
Lamúrias por não ter gritado toda a ternura, a necessidade, o desejo dos dias ensolarados.
Lamúrias por ter que ouvir os mesmos gritos vindos de outros lábios.
Lábios que tocam o que antes era meu. De minha posse. Meu.
E que agora só existe na impossibilidade.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Seu pai estava extremamente intrigado com a recente relação de seu filho com a vizinha da frente.
Ele passava o dia ruminando sobre o que os dois tanto conversavam incessantemente. 
Arranjavam desculpas para se encontrarem na esquina e lá ficavam, por horas a fio, discorrendo sobre o que apenas o mais imaginativo dos homens poderia imaginar.
Desde que estavam livres das obrigações diárias, fosse dia, fosse noite, fosse chuva ou fosse sol, lá estavam os dois a conversar.
Na esquina. No portão. Encostados no muro. Ou apenas em pé no passeio. 
Era sempre possível vê-los ali, sempre tão intensos um com o outro em puro papo.
Aquela garota vizinha deveria ter um repertorio de assuntos bem abrangente, o pai pensava, era a única explicação.
E além de saber sobre assuntos variados, ela provavelmente também saberia à fundo cada um deles, de tão inesgotáveis que eram as conversas.
Até que um dia, os assuntos pareceram ter findado. Os encontros foram escasseando até se tornarem raros e, logo depois, extintos.
O pai então, após passado um certo tempo de lamuriosas saudades, resolveu perguntar ao filho o que tanto lhe intrigava.
O filho respondeu que, diferentemente das impressões do pai, a garota vizinha possuía uma gama de assuntos extremamente simplória.
O pai, mais intrigado ainda, perguntou porque então eles conversavam tão incessante sobre banalidades. Não lhe parecia possível repassa-las por mais que três vezes durante toda a vida.
O filho suspirou profundamente e explicou que sua relação com a garota vizinha era como fumar um cigarro ao esperar por um ônibus no ponto com um cérebro exausto depois de um longo dia de trabalho.
Um gesto autônomo que se faz. Que não é preciso qualquer tipo de raciocínio lógico.
Fazer por fazer só para não estar fazendo nada.
O pai perguntou então porque tal relação tinha acabado sem qualquer conflito aparente. Conversas banais não deveriam gerar conflitos - sobre o que terão conflito de princípios e ideias? Futilidades?! 
Todo cigarro apaga, né, pai?! - respondeu o filho, apenas.
A garota vizinha não tardou a se mudar. Se seu filho sabia do motivo, também não aparente, não lhe comunicou.
Uma semana depois, virou fumante.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

É tão natural nossa capacidade de tecer um véu da verdade no que queremos que seja.
O nosso intelecto é intrínseco e complexo de tal forma que nossa percepção da realidade é distorcida.
Somente quando despimos nossa apreensão da realidade do véu das nossas necessidades emocionais conseguimos abstrair a verdade dos momentos.
Mas a realidade imparcial é incapaz de suprir nossa necessidade do outro.
A imparcialidade do ser seria a nossa ruína.
Todos os momentos seriam os mesmos.
Todas as pessoas seriam deléveis.
Todos os amores seriam extintos.
E o objetivo da vida deixaria de existir.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

É demais querer que seus olhos pousem só em mim?
Querer que somente a minha essência intrigue sua mente?
Que só o meu cheiro lhe desperte desejo?
Que só o meu toque lhe acalme a alma?
É demais querer possuí-la em meu domínio, minha prisão?
Sem visitação. Sem banho de sol diário. Não quero que o sol queime sua pele. Ela é minha.
Quero-a encarcerada em mim.
A necessidade do meu amor seria a sua ruína se decidisse interceder por suas vontades.
Mas, mesmo na sua loucura - na minha loucura -, prefiro viver na sua impossibilidade do que na desgraça da sua plenitude.
Ser pleno em meu amor seria o mesmo que ser o mandante e executor da sua morte.
Seu carrasco. Meu carrasco.
Como um câncer, comeria sua alma, sua força, seu brilho.
Depenaria suas asas para não mais voar para longe.
E quando tudo já tivesse se ido, quando minha sede já tivesse sido saciada, o amor iria também.
As asas que a fizeram voar até meus olhos teriam-se ido na minha ânsia de tê-la.
Meu amor pelo pássaro deixaria de existir quando pássaro você não mais fosse.
Apenas plane à minha volta, longe do meu alcance, longe do meu amor.
Ele será a sua morte.
E, por consequência, a minha.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Agenor sofria de um problema.
Não podia matar sua sede por Ella.
Queria ser metal. Fundir.
Era como um sedento que fizesse dela sua água. 
Tê-la aos sorvos.
Ela lhe trazia um alívio que somente poderia ser entendido pelos sedentos e famintos.
A urgência com a que a olhava era ânsia em satisfazer uma necessidade primal.
Ella teimava em lhe negar desta água.
Sempre se escondendo com mãos, lençóis e camisas.
Enquanto ele queria despi-la, tê-la andando livremente pelo quarto a procura de algum objeto perdido, ela insistia em cobrir-se com pedaços de farrapo inconvenientes. Ah, se ela lhe fosse bondosa e matasse sua sede! Observaria cada pequeno detalhe, trejeito. Teria-a por completo. 
Às vezes, pensava que Ella sabia do seu tormento e o torturava.
Deleitava-se no seu sofrimento e angústia. Seu sorriso por vezes lhe era maroto demais ao puxar de um lençol.
Como quem diz: você já teve o suficiente por hoje, querido.
E ele, ao olhar para o tecido onde desejava ver pele, sorria tristemente: nunca será suficiente, querida. Somente a morte mata o anseio de uma vida.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Tudo era diferente.
O modo como mexia nos cabelos sedosos, como se curvava sobre a mesa para escrever em concentração, como se recostava na cadeira com leve desleixo, como observava quando escutava, como gesticulava quando falava, como flexionava a voz, como ria das brincadeiras alheias e como ria das próprias gracinhas.
Tudo era diferente.
E ainda assim, o cheiro, o perfume.
Bebia da sua essência pelo olfato, o mais intenso de todos os sentidos.
E encontrava ali mais uma pegada do passado. Uma poça enlameada com o formato da pisada de quem já se foi.
Se foi sob a torrente de todas as decepções.
A essência que sentia nesse exato momento vinha quase que com um frio de chuva daquele verão ensolarado.
A essência poderia me tragar de volta ao passado, procurando por um sol inexistente entre as nuvens pesadas e preguiçosas em partir.
A essência, somente a essência, teria esse poder.
Mas, dessa vez, apenas pulei a poça, me livrei da lama que respingou e segui em frente.
Não seria possível que o mesmo cheiro me levasse pelo mesmo caminho, me deixasse com uma mesma pegada à frente, com as mesmas roupas encharcadas.
Não seria possível.
O caminho era outro.
O passo era outro.
Eu era outra.
Tudo era diferente.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Doralices

Eu te disse, Doralice, que não andasse por aquelas bandas.

Não bebesse daquela água.
Não deitasse naquela relva.

Eu te disse, Doralice, que não se enganasse pelos olhos.

Não se deleitasse com o certo toque.
Nem se inebriasse pela particular essência.

Eu te disse, Doralice, que não se deixasse levar pelas vontades.

Não se entregasse aos devaneios.
Não se iludisse com os sonhos.

Eu te disse, Doralice, assim como tantos outros:

Andar pelas sertanias que não domina é andar pelo coração de quem não te ama. 

Eu te disse, Doralice, mas cansei de dizer:

Desbravar fronteiras é para os bandeirantes, não para Doralices.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Libertação

chorar
sem motivos
       pretensões

chorar
incessantemente

chorar
nem sempre pela dor
        ou       por 1 amor
        ou       por um fracasso
pela vida

chorar
pela necessidade
                    paz
de espírito

chorar
pelo alívio 
desconhecido
misterioso
imprescindível

chorar
cessar as dores
           as noites
dores
           os dias
dores
            as horas
dores
            a vida

chorar
não sempre
    mas 
não nunca

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Incoerência social



Será que eu sou errada 
por gostar do estranho
                  do incomum 
                  do diferente 
do único?

Será que minha aversão
ao padrão é sem sentido
                           infundada 
                            irracional 
incoerente?

Ou será que a sociedade
 simplesmente se esqueceu que, 
                                       apesar de vivermos em conjunto, 
somos indivíduos, 
                                       completamente únicos, 
em nossa essência?

Morte - 1

morte
crime da vida
somos inocentes réus

julgados
           condenados
           discriminados
           
morto
adjetivo injusto

nascer
crime imputido
todos nós, conscientes seres,
criminosos descarados
nascidos, bandidos

morte
combustível mais potente
da vida mais sagaz
do amor mais arisco
                      impossível
redentor da minha Copacabana

escolhas
não escolhemos nascer
não escolhemos morrer
escolhemos apenas o como

um destino certo
caminhos eternos
                infinitos

que findam no último olhar
                 ou              grito
                 ou              
apenas um
unico 
                                  pensar

Suicidas

João. Maria e José.

Lá estavam os três.

O fumante, intrépido no ato de repetidamente acender seu cigarro de palha; a fumante-suicida, desejosamente fitando a fumaça alheia; e o não-fumante, sufocando no ar que inspirava na esperança de que fosse tabaco.

João, sem perceber o drama interno do qual seus outros comparsas 
padeciam; Maria, pensando seriamente em fumar a fumaça-suicida do seu cigarrocareta; José, tentando distrair sua mente em abstinência recente.

O cigarro de João apagou e ele, por sua vez, não fez questão de acendê-lo. A vontade de Maria aumentou e ela, cedendo, confessou aos outros sua vontade de fumar o Suicida. O desejo de José apertou e ele, injuriado, fez ouvir sua completa aversão ao ato de fumar um Suicida.

João, bom de coração como era, se ofereceu para acompanhar Maria no tal ato, como dissera José, libidinoso. Maria, aliviada como estava, cedeu a João um de seus Suicidas. José, inconformado, replicou a João que não fumasse, insistiu ferozmente, chegando a se levantar para expressar seu ponto.

O dar de ombros de João foi simultâneo ao acender do seu Suicida. O olhar de Maria acompanhou a reação de José. O estremecer de José externou desaprovação. Parado, fitou os dois fumantes-suicidas.

João o encarou tranquilamente através da fumaça que soltava. Maria replicou que aquele Suicida, em particular, era um Suicida-Livre, ou seja, mais aceitável. José, ainda inconformado, voltou a se sentar.

João, tranquilo, continuava fumando. Maria, atenta, ofereceu à José um Suicida. José, aliviado, aceitou.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Eu me abro no fecho

O vento cortava. Chilreava.
Parecia uivar o canto do frio. 
Bagunçava meus cabelos já despenteados e entrava pelas mangas da minha jaqueta surrada.
Olhei o relógio. Ela estava cinco minutos atrasada, como sempre.
O atraso que antes me arrancava sorrisos, hoje gerou um esgar.
Dei um trago no cigarro e apertei mais o copo de café em minhas mãos, na esperança de esquentá-las.
Obviamente em vão. Seria mais fácil elas o esfriarem.
O cigarro apagou, é claro. Onde estava o isqueiro?!
Enquanto o procurava, sua mão tocou meu ombro. Lá estava ela.
Bonita, como sempre. Mas não tão bela como antes.

Decepção muda muita coisa.

Um sorriso torto cresceu em meus lábios, contrariados.
Peguei em sua mão, sempre mais quente que a minha, esperando o alívio que aquele toque gerava surgisse em meu corpo. Nada. Os ombros continuaram tesos como estavam há um longo tempo.

Decepção muda muita coisa.

Iríamos ver um filme no cinema do bairro. Nada demais, apenas uma distração durante a semana.
Fomos andando, sua mão na minha, suas palavras ao vento. Antes o que escutava com tanta atenção, agora mal chegava aos meus ouvidos.

Decepção muda muita coisa.

Parecia utópico poder andar de mãos dadas com ela, pelas ruas da minha cidade, com a mente tranquila.
Um sonho, antes muito almejado, se tornando realidade.
Mas, ou a realidade possuía um gosto mais suave que os sonhos, ou os sonhos haviam mudado.

Decepção muda muita coisa.

Quando chegamos ao cinema, fomos logo para o fundo, mais afastado. Queríamos namorar à luz da projeção. Pensei que meus lábios rasgariam ante a tensão do sorriso que eu esperava surgir naquela situação. Nada.

Decepção muda muita coisa.

Apagaram-se as luzes. O cinema estava relativamente vazio, para nossa sorte. Poderíamos ficar à vontade.
Nunca havíamos conseguido ver mais que quinze minutos de filme antes. Quando nos juntávamos a ânsia pelo toque, pelo beijo, era forte demais. Colocávamos o filme e, logo depois, já o havíamos esquecido entre nossos beijos, nossas conversas e nossos risos.
Hoje não. O filme transcorreu calmamente. Trocamos algumas carícias, apenas. 

Decepção muda muita coisa.

Quando saímos, o frio parecia ainda mais cortante. Nos abraçamos e seguimos pela calçada, corpos ainda entrelaçados um no outro. Mas, não pela vontade, sim pela necessidade.
Ela iria dormir na minha cama. Outra utopia. Dormir nos braços do nosso amor. 
Chegamos em casa. Comemos, trocando palavras aleatórias. Fomos para cama.
A noite com a qual eu sonhava aconteceu, mas, mais uma vez, a realidade pareceu atenuar seu gosto.
Ela não dormiu nos meus braços e eu não me importei. Quando fechei os olhos, minha mente estava vazia. Não me assustaria se meu coração também estivesse.

Decepção muda muita coisa.

Acordamos. O sono a deixava sexy, mas não tive vontade de prová-la logo de manhã. 
"Bom dia, flor-do-dia."
Tomamos banho. Seu corpo era lindo ensaboado, mas, ainda assim, não tive vontade de prová-la.

Decepção muda muita coisa.

Enquanto observava ela se vestir, uma resolução começava a se formar em minha mente.
E, pela sua expressão, a mesma resolução parecia se formar na dela.
Não estávamos tristes.
Era um alívio finalmente aceitar o óbvio. Obrigada.
O plano era passarmos o dia à-toa, apenas entre nós, nossos beijos, nossos risos, nosso amor.
Mas eu via a pergunta, que pairava em minha mente, no rosto dela: pra que?

Decepção muda muita coisa.

Ela me sorriu um entendimento. Eu sorri de volta. As lágrimas não surgiram como era de se esperar.
O sorriso era sincero, a calma também.
Levei-a até a porta. 
Beijei suas mãos, seus braços, seu pescoço, suas bochechas, sua testa, seu nariz. Beijei seus lábios.
Os lábios mais perfeitos que já tocaram os meus, os mais cálidos, os mais macios. Um único beijo.
Sorrimos.
"Até amanhã." Uma mentira dita quase em uníssono.
O amanhã nunca veio.
Não era preciso. Nosso amor havia ficado no ontem, e o hoje apenas comprovava o óbvio: os amores também podem falir.
E o nosso faliu. 

Decepção muda muita coisa.



quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Não venha

Às vezes, penso que é melhor você não vir.
É. Não venha.
Não venha.
Não deturpe meu dia.
Não perturbe minha mente.
Não tente minha sanidade.
Não venha. Permaneça no limbo.
Nem cá, nem lá.
No intermédio. Na indiferença.

Seja o intervalo.
Seja a ausência.
Seja o desconhecido ao virar de uma esquina.
Seja apenas a vontade.
Seja você. Mas o seja longe de mim.

Não venha.

Não venha me perseguir com seus olhos avelãs, seu cabelo negro e sua pele alva.
Guarde seus dotes, sempre tão bem cuidados, para outra.
Esconda suas mãos, seu pescoço, seus lábios.
Vista a burca.
A burca da minha sanidade.

Não venha.

Não me procure.
Deixe-me seguir em frente com os espólios que restaram.

Seja justa.
Não venha.

Seja bondosa.
Não venha.

Seja pura.
Não venha.

Seja indiferente.
Não venha.

Seja bela.
Mas onde eu não possa vê-la.
Passe o melhor perfume. O nosso perfume. Banhe-se nele.
Mas permaneça a uma distância que não me seja possível cheirá-lo.
Por fim, quando não vier..
Me ame.
Me abrace.
Me cheire.
Me beije.
Me toque.
Mas no limbo. No intervalo. No abstrato.

Eu lhe peço, não venha.
Um mundo de amores.
                                  Inconsequentes.
                                        Incoerentes.
                                         Invencíveis.
                                         Intragáveis.
                                          Intangíveis.
Impossíveis.

Café

Os poetas falam tanto sobre café, cigarros e decepções amorosas.
E eu entendo apenas sobre os dois últimos.
Cigarros que despedaçaram meus dentes e decepções que amarelaram meu coração.
Não gosto de café.
Não gosto de café com pão.
Não gosto de café com bolo.
Não gosto de café com cigarros.
Não gosto de café.
Mas como falar de amores e cigarros sem falar de café?!
Como ser um personagem da vida sem afogar as mágoas num café amargo enquanto se fuma um cigarro?!

Imagine:
"A paisagem era austera. Seu coração era austero. Sua dor, latente. Não sabia se o café que era amargo demais ou se seu paladar havia engrossado assim como sua voz devido aos inúmeros soluços da noite anterior. Observava a fumaça se desfazer com o vento, a paisagem ao fundo. O cigarro que mata. O café que amarga. O coração que anseia. Todos os três tão comuns e rotineiros, pareciam estranhos coadjuvantes naquele dia ensolarado. 
Que ironia! Sol, logo hoje.
Será que os deuses não se padeciam das suas lágrimas?! Misericórdia, ele queria gritar.
E apesar do sol intenso e intermitente em sua nuca, ele continuava a beber o café amargo e a puxar a fumaça densa e quente. 
Era desconfortável. 
Mas era o necessário.
Corações despedaçados se curam assim. Entre cigarros e cafés."

Sou uma imitação de poeta.
Uma tentativa.
Um engasgo.
Uma vontade irrealizável.
Um grito engolido.
Um orgasmo perdido.
Um café não tomado.
Um poeta que não bebe café é o mesmo que um maço sem cigarros.
Dispensável.


Reluz como ouro

É engraçado como as pessoas reluzem de acordo com a luz que incide sobre elas.
Por luz entenda a percepção do outro. O olhar.
Sob o olhar certo qualquer metal reluz como ouro.
E hoje eu vi ouro em seus cabelos lânguidos.
Dourados do meu olhar.
Reflexos da minha observação.
Seus olhos me pareceram mais vivos e sua voz mais cálida.
Seu toque ausente no meu anseio por ele.
O cheiro do seu cigarro de filtro parecia eau de perfume.
Você não havia se transformado da noite pro dia.
Era eu quem tinha colocado os óculos certos para os meus olhos desesperançados.
E, dessa vez, eu não apenas a vi, eu a enxerguei, como de fato era.
Complexa em seus problemas. Carente em suas necessidades.
Desesperada nos seus amores. Inconsequente em seu atos.
Crua em sua percepção.
Sozinha em seus relacionamentos.
Ao mesmo tempo que me senti tentada, me senti alertada.
"Não pise, não toque, não olhe." Apenas sinta.
Então, eu senti.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Gigante? Porra nenhuma!

Tudo o que eu queria era que o povo do manifesto tivesse um pouco mais de cultura e educação. 
Pra pelo menos existir possibilidade. 
Mas nem isso, né, moçada?!
Não estou falando que eles são uns ignorantes analfabetos. De forma alguma, não sou melhor que ninguém. É só que se eles soubessem da metade não estariam nessa felicidade toda por estarem indo às ruas apenas.
Não me entendam mal, estou muito feliz e animada do pessoal estar se colocando à disposição de ir, andar, cantar, gritar e etc. 

Mas é que tem gente que acha que é festa.
Que manifestação é parada sabe-se-lá-do-quê. Que é micareta. Carnaval. Arrastão. Tatame de luta. Até açougue, se bobear. Menos manifestação.
Vaiam policiais, picham muros. Erguem cartazes sarcásticos e com frases de efeito que impressionam e não mudam nada. Eles esquecem que reforma não é feita da noite pro dia, parando o trânsito das cidades.

Reforma requer esforço, dedicação, disciplina, perseverança. É preciso acompanhar a todo momento o desenrolar do governo.

É ir à urna com a tal consciência de quem vai às ruas. E saber que não é só ir lá e votar e cumprir sua obrigação.
É lembrar em quem votou e acompanhar o que o dito cujo anda fazendo.

Ser humano é egoísta. Precisou tirar 0,20 a mais do bolso pra ele ir à rua. Porque os trilhões da Copa saíram dos cofres públicos.
Dinheiro que você já pagou, e ainda paga, em qualquer coisa que compra. 
Ou seja, o dinheiro já tava lá mesmo. Indiferente.
Aí, você fica insatisfeito com os 0,20 a mais e o que faz? Vai à rua. 
Mas ir à rua por causa de 0,20 é muito mesquinho, né?!

Aí sim, o povo vai pra Internet pesquisar o que mais de podre tem no governo:
Nascituro, PEC 37, ato medico, royalties do petróleo, cura gay, e por aí vai.

Ninguém pensa no bem maior não, sô.
Pergunta pra um político porque ele é politico. Duvido que é pra ajudar aos outros.
Ninguém pensa no todo quando os problemas pessoais batem ali ó, na porta de casa.

Então, manifestante, vá à rua, sim. Faça parte da história do seu país. Mas não vá gritar abobrinha, nem se revoltar contra o que nem sabe.
Se não souber e nem tiver interesse em saber, vá apenas pra encher as ruas.
Porque quando você, classe media marrentinha, vaia policial, picha muro, fala merda, só denigre o que, de fato, é correto e fundamentado.

Se o pessoal começar a pensar no todo, e a trabalhar pelo todo, não haverá problemas pessoais, apenas sociais.
Porque o que não for problema pro todo, não vai ser problema at all. Vai ser só um empecilho rotineiro. Mais uma pedrinha no meio do caminho.

Eu vou à rua, sim. Mas me mantenho calada e atenta ao que acontece.
Porque gritar opiniões pela metade me envergonha.

Para de assistir suas séries, ver sua novela, jogar seu vídeo game, ver seu filme. Vá ler um livro, vá à um Teatro, à uma galeria.
Vá se tornar uma pessoa melhor e menos mesquinha. 
Se você quer mudança comece por você.
Se quer mais investimento na cultura, procure cultura. Se quer mais investimento na educação, dedique-se aos estudos.
Se quer justiça, cumpra com seus deveres e lute por seus direitos. Se quer futuro, invista no seu presente aprendendo com o passado.

Se quer reforma política, eduque-se, instrua-se, construa valores morais sólidos e candidate-se ao Senado.

Faça a diferença que tanto deseja.

Senão, cale-se, engula seu orgulho e admita que o país não está do jeito que você acha certo porque você não tem coragem de colocar a cara a tapa por ele.

Conto de Verão

Uma vez, um jovem saiu de casa com o intuito de comprar um enfeite para colocar na mesa de centro da sua sala de estar.
Ele queria um enfeite modesto, apenas algum adorno para preencher aquele tampo vazio.
Mas um enfeite que fizesse a diferença, que desse um tom para a sala de estar.
E lá foi ele na empreitada.
Por sorte, a primeira vitrine que avista lhe chama a atenção.
Lá estava um adorno que não esperava encontrar, muito menos possuir. Não condizia com a decoração da sua sala de estar, em absolutamente nada.
Mas, ainda assim, havia algo ali. A forma como a luz da vitrine refletia em sua superfície. A cor. O próprio objeto em si. Havia um quê de elegância.
E apesar de não ser fã de coisas assim e de sua sala não ostentar nada de elegância, ele quis aquele adorno.
Entrou na loja, conversou com o vendedor e, muito mais fácil do que imaginava, lá ia rua afora com o tal adorno embaixo do braço. Sorriso estampado no rosto e o andar animado.
Chegou em casa e colocou a mais nova aquisição em cima da mesa.
O contraste foi grande. Aquela sala simples com um único adorno sofisticado.
Se sentiu quase um contemporâneo. Brincando com fogo. E o fogo era belíssimo.
Sempre que passava pela sala não podia deixar de sorrir. Sentia uma alegria imensa e verdadeira simplesmente por ter aquilo ali. Brincava consigo mesmo e ria da própria audácia. Seu riso ecoava pelas paredes da sala, como se esta, na verdade, fosse uma galeria.
Bem, o tempo passou.
Não se sabe bem ao certo o que aconteceu.
Se o objeto havia perdido sua beleza com o passar do tempo, sua superfície descascado e ofuscado, não mais refletindo o brilho das luzes.
Ou se, na verdade, a vitrine desse o tom ao objeto, a elegância, o mistério.
Ou se, de tanto passar pela sala, observar o objeto de vários ângulos, o encantamento havia acabado. 
Os dias de contemporâneo, meu caro, findaram.
Ele acabou por deixar o tampo vazio e esperar deixar o destino lhe levar por outras vitrines.
Não se desfez do objeto, porém. Mas o guardou no criado-mudo ao lado da cama.
Todos os dias ele dava uma olhada, fechava os olhos e tentava imaginá-lo naquela vitrine onde o havia encontrado e onde o deveria ter deixado.
Ser contemporâneo e brincar com fogo é bom. Na verdade, é absurdamente estimulante.
Só que o fogo queima.

Cartão Postal de BH

Quando falam sobre BH o que lhe vem à mente?
Praça da Liberdade? Palacio das Artes? Parque Municipal?
Praça da Estação? Praça do Papa?
Ousaria até dizer: BH, a cidade das praças? Por que nao, certo?!

Pois bem, estava eu, em plena quarta-feira, sentada com os amigos, na varanda do Edifício Maleta, tomando uma cerveja, quando, de repente, percebo que eu estava sentada no meio de um cartão postal de BH.
Um cartão postal que É a imagem que melhor define a cidade maravilhosa.

Imagine-se sentado no seguinte cenário:
A sua esquerda estão as portas de metal - aquelas de bares e lojas do centro
de qualquer cidade -, entremeadas por pilastras grossas, redondas, ornamentada
com pequeno azulejos cor de cimento.
Bem característico de cidade grande. Concreto, metal - cidade que cresceu
rápido, sem luxo.
Logo a frente, a velha e sempre presente mesa de bar. Aquelas de plástico mesmo,
sabe?
Em cima dela nada mais que: um pacote de amendoim salgado, várias bitucas de 
cigarro de palha, copos de cerveja, isqueiros.
Com seus cigarros de palha e os copos de cerveja, a mesa grita: MINAS, uai!

Meu companheiro da noite é ninguem mais ninguem menos que a representação
da cena jovem e pop de BH: um gay maravilhosamente despojado, inteligente, comunicativo.

A esquerda temos a sacada de concreto e aço inox do prédio. 
Naquela superfície espelhada e contemporânea vê-se claramente o séc.XXI em
um prédio tão representativo da história de BH. A modernidade chega para todos.

Logo abaixo, temos a Augusto de Lima.
Agradavelmente movimentada pelo horário já tardio.
ônibus que vêm e que param, desce gente, sobe gente.
Pessoas que atravessam as ruas, naquele ritmo constante, necessário.
Retardatário em BH nada mais é que atropelado.

Entre as duas mãos da rua, há árvores plantadas na calçada. 
Dá exatamente aquele ar de praça, primordial em BH.
Você se sente bem. Ver aquelas arvores altas entre os metais dos carros que reluzem
entre os semáforos e o concreto dos prédios que crescem impiedosos sobre aquele
movimento de civilização.

Do outro lado da rua, os edifícios são residenciais. Nada de vidro espelhado,
30 andares, etc. Não. Um deles é verde, abacate, ousaria dizer. Com varandas e 
janelas que mostram claramente que, ali, há vida.

Mas o que mais torna esse cenário o cartão postal perfeito de BH é o Casarão.
No quarteirão da frente, do outro lado da rua, no meio de todo aquele barulho e
movimento, surge uma construção histórica, de apenas um andar e da largura do
quarteirão. Arquitetura belíssima.
E o mais engraçado é a luz que ilumina tal construção.
Não é daquelas fluorescentes que dão um ar inóspito para todo prédio histórico.
Não, pelo contrário.
É aquela luz amarelada, que a mídia tanto insiste em condenar pelo alto consumo
de energia elétrica.
Aquela luz que você lembra da sua infância. Aconchegante.
Parece haver vida lá dentro. Não é apenas mais um "prédio histórico" cheio
de frescuras. Não pise, não toque, não olhe. 
Mineiro é tudo, menos fresco.
Aquela luz fez a cena. Um casarão histórico que parece dizer: vamos entre, há
vida aqui dentro. Mas, nao só isso, um pao de queijo e um cafézinho também.

BH é a cidade maravilhosa. Na qual, você tem, ao mesmo tempo, modernidade,
civilização, história e vida.
O Rio que me desculpe com o seu Cristo e suas praias.
Mas eu gosto mesmo é de BH com suas praças e cigarros de palha.