Lisbela estava feliz
esta noite. Sua filha andrógena havia chegado à uma resolução: não iria se
aventurar na miséria da desolação na cidade
em que cursara faculdade por certo tempo. Lisbela, como toda mãe, odiava
com toda a força que possuía em sua alma calejada o marco da confusão sexual na
vida de sua filha. Rio Cordas. Ela sonhava com sombras e vultos percorrendo as
ruas daquela cidade deserta que tivera sua paz violentada pela fúria
universitária, becos que não existiam povoavam sua mente com a prostituição
chula de interior e tráfico dos mais peçonhentos entorpecentes, estes também
frutos da sua imaginação aterrorizada e da consciência pastosa e pesada que a
alimentava.
Sua filha, zelada,
amada, engomada, havia sido entregue de mala e cuia àquela cidade do pecado
pelas suas próprias mãos. Quando se lembrava da época de mais impasse da sua
vida, sentia o gosto de bile lhe queimar a língua e corroer os dentes. Ela
havia falhado. Como recompensa pela melhor das intenções, por ter sido uma mãe
passiva, subserviente, atenciosa, que havia investido na cria toda a força que
possuía, havia recebido em casa, uma filha cuspida por Sodoma, traumatizada,
violentada, drogada, em suma, desiludida com a própria existência.
Quando os dias, logo
depois os meses, foram se passando, Lisbela começou a se lembrar do cachorro
abandonado que vivia com eles. No natal de 2006, sua zelada filha havia pedido
um cachorro como presente. Lisbela detestava cachorros, gatos, coelhos, ratos,
papagaios, cobras, sapos, e todos os outros bichos que pudessem vir a ter algum
tipo de relação com humanos fora de suas gaiolas. Então, quando o
introspecto Sr. Pedro, seu marido e
provedor, surgiu, muito sorrateiramente, com o presente em questão trancado no
banheiro da relojoaria em que trabalhavam, sua amada filha já estava dando
choques, quase que literalmente, de tão elétrica sua alegria. Este, por sinal,
foi outro momento de impasse pelo qual passou e que, por sorte do acaso, não
falhou. Ela permitiu que o presente, então chamado Tex, ficasse.
O filhote era
desengonçado e abobado mas era o único que estava presente quando fazia o
almoço, lavava as vasilhas, as roupas, a casa. Ele e seu olhar sonso a
acompanhavam por todo o seu percurso de doméstica sem hesitação. Sim, ele dava
trabalho, Sr. Pedro e sua filha falharam em educá-lo, e ele agia como se toda a
casa fosse seu banheiro. Assim como ele a acompanhava nos cuidados da casa, ele
também a acompanhava no seu cuidado para com ele. Quando ela lavava toda a área
externa da casa, ele se abrigava em lugar seguro da agua, deitava
confortavelmente, e a observava com seu olhar parado.
Quando eles se
mudaram para um apartamento, Tex foi delegado à irmã de Lisbela, Soraia. Soraia
era a tia fanática da família. Quando ela amava, doava inteiramente sua força
vital para o que quer que amasse. Ela havia sido fiel temerária das principais
e maiores igrejas evangélicas, obreira fervorosa da primeira igreja católica a
ser construída na cidade, candidata implacável à uma cadeira da Câmara
Legislativa, e uma mãe completamente louca. Ela subia a cidade inteira, sempre
muito atarefada em cima dos seus sapatos de salto alto vermelhos envernizados,
fosse entregando evangelhos, santinhos cristãos e santinhos eleitoreiros, ou
simplesmente resolvendo um problema inexistente e urgentíssimo para algum de
seus filhos, ou para todos eles.
Lisbela não ouviu
mais falar em Tex - de quem até sentia falta naquele apartamento abafado e
silencioso - por um bom tempo, sua filha havia se esquecido dele há tempos
idos. Até que, o não-reconhecido companheiro, foi atropelado por um ônibus.
Soraia, sempre atarefada, havia esquecido a porta aberta ao sair e o
aventureiro e inexperiente caubói, escapou para a cacofonia das ruas. Lisbela
se preocupou de tal forma que não acreditou em si mesma quando se viu ligando,
por três semanas, uma vez por semana, para a irmã com quem mal conversava para
saber notícias.
Depois da ladainha
inicial entre uma conversa de duas irmãs que possuíam mais onze irmãos, Soraia
contou em detalhes o trabalho que o cachorro estava lhe dando. Ele,
aparentemente, havia voltado doido, segundo ela, do acidente. O cachorro que
tinha sido atropelado como quieto, parcimonioso e abobado, voltara como um
cachorro agitado, trabalhoso e incontrolável. Soraia estava deixando de exercer
sua função - fritadora de pastel - de extrema importância na barraquinha de
Santo Antônio para tentar cuidar do cachorro louco. Tex havia quebrado a pata
traseira direita, pelo menos era isso o que desconfiava Soraia que nem o havia
levado ao veterinário. Ele mancava, muito.
Lisbela passou
semanas muda quanto à preocupação pelo seu companheiro ferido. Uma preocupação
que só reconheceu quando sentiu o alívio de resolver o problema. Tex voltaria a
morar na casa que morara antes, com seu outro irmão Bernardo. Ele era um homem
sozinho, alcoólatra, arrependido de absolutamente todas as escolhas que tomara
na vida. Era casado por temporadas com mulheres várias. Sua casa parecia uma
hospedaria de mulheres infelizes com as próprias vidas que o usavam como uma
boia salva-vidas, uma nova chance, uma porta para um futuro melhor. Só que a
boia era furada, a chance era um trote e a porta não tinha portal, se
sustentava em pé com o próprio peso e, ao menor toque, pressão, sopro, caía.
Tex foi bem recebido por Marcilania, uma loira sulista com os olhos mais azuis
que o céu de Junho. Ela foi a temporada mais longa de todas. Ela era linda.
Tex se recuperou,
apesar de mancar pelo resto da vida quando correr. Ele era agora um cachorro
saudável, pulguento e feliz. Realmente feliz. Ele parecia saltitar e não andar.
Lisbela gostava de manter esse pensamento em mente quando o via correr, apesar de
sua filha sempre ter afirmado que era um efeito sádico proporcionado pela
fratura mal curada dele.
Lisbela havia
voltado pouco tempo depois de Tex para a casa na qual os dois se conheceram.
Desde que haviam morados todos juntos muitos anos se passaram. Ela viera
sozinha com o marido, a filha não mais desflorava - de maneira muito estranha,
diga-se de passagem - para os dozes anos, estava agora sendo tragada pela
podridão de Rio Cordas, e encontrara Tex ali, como sempre estivera, só que com
outro dono. Tex agora só estava presente quando requisitado. E, quando Lisbela
não se lembrava dele, ou seja, ninguém mais se lembrava - seu dono, assim como
a irmã, não era muito sociável com animais, e o marido e a filha eram
indiferentes ao velho -, surgiam poças de xixi exatamente no meio do portão que
o separavam da antiga família.
Lisbela sempre
pensava nele como no cachorro abandonado. Ele não havia sido efetivamente
abandonado, é claro. Era alimentado com a ração do gato da filha, e agraciado
com pedaços de pão esporádicos que ganhava de Lisbela, a cada quatro meses e
meio era recolhido em casa na hora do almoço e devolvido ao entardecer
completamente pelado e sem pulgas.
Tex parecia aquela
bola velha que ficava no quintal, vez ou outra, quando tomavam ciência dela,
quem quer que fosse, dava uma rebatida no muro e tentava uma embaixadinha. Tex
era aquela bola que estava sempre ali, invisível à mente ocupada, inconveniente
ao estranho medroso e companheiro à alma solitária.
Lisbela via em sua
filha o cachorro imaginário que vivia sem suas memórias e se recuperava do
atropelamento com ímpeto desmedido e sem direção. Rio Cordas havia cuspido em
sua casa a sua obra mais prima de todas, seu zelo, seu esforço, sua alma. E ela
se corroía em bile ao pensar que fora mestre-de-obras de todo o acontecido. Ela
não sabia o que tinha se passado com sua cria na cidade do pecado, mas seu
ácido arrependimento não necessitava de porques para queimar.
Ela estava sublime,
andando pela casa, conversando alegremente, pensava que, com o marido e a
filha, mas, na verdade, sozinha. E tentava não demonstrar em absoluto sua
alegria e animação com as noites de sono que teria pela frente com sua filha
debaixo do seu teto, em respeito à resolução que tomara por conta própria.
Sua filha, sempre
tão libertária e revoltosa, não iria mais viajar para a cidade do pecado.
Amanhã poderia ser segunda, Lisbela levantaria animada com os trabalhos
domésticos do dia e agraciaria Tex com um pedaço de pão velho.
Ela só se deitou
para dormir depois que a resolução havia sido completamente firmada pela
desolação da filha, estendeu o primeiro cobertor, branco com listras azuis, e
se deitou.
Chamou pela filha da
cama. E a pediu encarecidamente para que a cobrisse.
Quieta para que a
mãe não percebesse seu estado alterado e encarasse seu silêncio como pesar
pelos planos desfeitos, ela estendeu a segunda coberta, mais velha que ela
mesma e só retirada do armário em tempos gélidos.
- Quando eu morrer e estiver para ser enterrada, eu quero estar de batom... - comentou Lisbela, tentando fazer graça para a filha.
- Ah é? Qual cor? Vermelho, roxo, rosa? - riu a filha, essas tentativas da sua mãe eram tão absurdamente raras que arrancavam risos de alegria e não de graça.
- Rosa, bem clarinho. - respondeu ela, como se passasse um batom invisível nos lábios.
- Blush? Sombra? - desdenhou a outra.
- Não. Blush, não. Carrega demais. Quero só esse protetor que acabei de passar. Ele da um tom saudável pra pele. - respondeu ela, desencavando o protetor dos cobertores dobrados ao lado.
- Ah, sim, pode deixar. - comentou a filha, risonha, enquanto estendia a terceira coberta, super fina, surpreendentemente quente e dificílima de dobrar, por cima da mãe.
Ela estava há
algumas semanas sem pintar a raiz branca do cabelo que crescia implacavelmente
com o passar dos seus quarenta e nove anos. Seu cabelo, que levara uma vida
inteira para crescer até os ombros, exibia uma cor de ameixa cintilante e os
fios brancos brilhavam e reluziam como mechas de prata. Seu rosto inteiro havia
se iluminado com aquela ousadia que temia ser incoerente e não usual para sua
idade. Somente agora, após vinte e cinco anos, toda uma vida, gasta em devoção
à família, ela havia começado a tirar o tempo para ponderar sobre si mesma,
sobre o que sempre quis e o que conseguiu. Sua alma calejada falava através do
seu olhar sábio e acuado, leitoso pelos calos que sofrera; e através das rugas
que chegaram mansamente e já começavam a formar um finco permanente entre as
duas negras sobrancelhas de águia.
- E tem que tirar minhas cutículas! - enquanto a filha saía e apagava luz.
- Ah, sim, sem problemas. Não esquecerei nunca das suas cutículas! - desdenhou a filha enquanto entrava no próprio quarto e fechava a porta.
- Mas sem esmalte! Cutículas sem esmalte! - ela ouviu Lisbela gritar pela última fresta.
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