domingo, 6 de julho de 2014

Batom (incompleto e nao revisado)


Lisbela estava feliz esta noite. Sua filha andrógena havia chegado à uma resolução: não iria se aventurar na miséria da desolação na cidade  em que cursara faculdade por certo tempo. Lisbela, como toda mãe, odiava com toda a força que possuía em sua alma calejada o marco da confusão sexual na vida de sua filha. Rio Cordas. Ela sonhava com sombras e vultos percorrendo as ruas daquela cidade deserta que tivera sua paz violentada pela fúria universitária, becos que não existiam povoavam sua mente com a prostituição chula de interior e tráfico dos mais peçonhentos entorpecentes, estes também frutos da sua imaginação aterrorizada e da consciência pastosa e pesada que a alimentava.
Sua filha, zelada, amada, engomada, havia sido entregue de mala e cuia àquela cidade do pecado pelas suas próprias mãos. Quando se lembrava da época de mais impasse da sua vida, sentia o gosto de bile lhe queimar a língua e corroer os dentes. Ela havia falhado. Como recompensa pela melhor das intenções, por ter sido uma mãe passiva, subserviente, atenciosa, que havia investido na cria toda a força que possuía, havia recebido em casa, uma filha cuspida por Sodoma, traumatizada, violentada, drogada, em suma, desiludida com a própria existência.
Quando os dias, logo depois os meses, foram se passando, Lisbela começou a se lembrar do cachorro abandonado que vivia com eles. No natal de 2006, sua zelada filha havia pedido um cachorro como presente. Lisbela detestava cachorros, gatos, coelhos, ratos, papagaios, cobras, sapos, e todos os outros bichos que pudessem vir a ter algum tipo de relação com humanos fora de suas gaiolas. Então, quando o introspecto  Sr. Pedro, seu marido e provedor, surgiu, muito sorrateiramente, com o presente em questão trancado no banheiro da relojoaria em que trabalhavam, sua amada filha já estava dando choques, quase que literalmente, de tão elétrica sua alegria. Este, por sinal, foi outro momento de impasse pelo qual passou e que, por sorte do acaso, não falhou. Ela permitiu que o presente, então chamado Tex, ficasse.
O filhote era desengonçado e abobado mas era o único que estava presente quando fazia o almoço, lavava as vasilhas, as roupas, a casa. Ele e seu olhar sonso a acompanhavam por todo o seu percurso de doméstica sem hesitação. Sim, ele dava trabalho, Sr. Pedro e sua filha falharam em educá-lo, e ele agia como se toda a casa fosse seu banheiro. Assim como ele a acompanhava nos cuidados da casa, ele também a acompanhava no seu cuidado para com ele. Quando ela lavava toda a área externa da casa, ele se abrigava em lugar seguro da agua, deitava confortavelmente, e a observava com seu olhar parado.
Quando eles se mudaram para um apartamento, Tex foi delegado à irmã de Lisbela, Soraia. Soraia era a tia fanática da família. Quando ela amava, doava inteiramente sua força vital para o que quer que amasse. Ela havia sido fiel temerária das principais e maiores igrejas evangélicas, obreira fervorosa da primeira igreja católica a ser construída na cidade, candidata implacável à uma cadeira da Câmara Legislativa, e uma mãe completamente louca. Ela subia a cidade inteira, sempre muito atarefada em cima dos seus sapatos de salto alto vermelhos envernizados, fosse entregando evangelhos, santinhos cristãos e santinhos eleitoreiros, ou simplesmente resolvendo um problema inexistente e urgentíssimo para algum de seus filhos, ou para todos eles.
Lisbela não ouviu mais falar em Tex - de quem até sentia falta naquele apartamento abafado e silencioso - por um bom tempo, sua filha havia se esquecido dele há tempos idos. Até que, o não-reconhecido companheiro, foi atropelado por um ônibus. Soraia, sempre atarefada, havia esquecido a porta aberta ao sair e o aventureiro e inexperiente caubói, escapou para a cacofonia das ruas. Lisbela se preocupou de tal forma que não acreditou em si mesma quando se viu ligando, por três semanas, uma vez por semana, para a irmã com quem mal conversava para saber notícias.
Depois da ladainha inicial entre uma conversa de duas irmãs que possuíam mais onze irmãos, Soraia contou em detalhes o trabalho que o cachorro estava lhe dando. Ele, aparentemente, havia voltado doido, segundo ela, do acidente. O cachorro que tinha sido atropelado como quieto, parcimonioso e abobado, voltara como um cachorro agitado, trabalhoso e incontrolável. Soraia estava deixando de exercer sua função - fritadora de pastel - de extrema importância na barraquinha de Santo Antônio para tentar cuidar do cachorro louco. Tex havia quebrado a pata traseira direita, pelo menos era isso o que desconfiava Soraia que nem o havia levado ao veterinário. Ele mancava, muito.
Lisbela passou semanas muda quanto à preocupação pelo seu companheiro ferido. Uma preocupação que só reconheceu quando sentiu o alívio de resolver o problema. Tex voltaria a morar na casa que morara antes, com seu outro irmão Bernardo. Ele era um homem sozinho, alcoólatra, arrependido de absolutamente todas as escolhas que tomara na vida. Era casado por temporadas com mulheres várias. Sua casa parecia uma hospedaria de mulheres infelizes com as próprias vidas que o usavam como uma boia salva-vidas, uma nova chance, uma porta para um futuro melhor. Só que a boia era furada, a chance era um trote e a porta não tinha portal, se sustentava em pé com o próprio peso e, ao menor toque, pressão, sopro, caía. Tex foi bem recebido por Marcilania, uma loira sulista com os olhos mais azuis que o céu de Junho. Ela foi a temporada mais longa de todas. Ela era linda.
Tex se recuperou, apesar de mancar pelo resto da vida quando correr. Ele era agora um cachorro saudável, pulguento e feliz. Realmente feliz. Ele parecia saltitar e não andar. Lisbela gostava de manter esse pensamento em mente quando o via correr, apesar de sua filha sempre ter afirmado que era um efeito sádico proporcionado pela fratura mal curada dele.
Lisbela havia voltado pouco tempo depois de Tex para a casa na qual os dois se conheceram. Desde que haviam morados todos juntos muitos anos se passaram. Ela viera sozinha com o marido, a filha não mais desflorava - de maneira muito estranha, diga-se de passagem - para os dozes anos, estava agora sendo tragada pela podridão de Rio Cordas, e encontrara Tex ali, como sempre estivera, só que com outro dono. Tex agora só estava presente quando requisitado. E, quando Lisbela não se lembrava dele, ou seja, ninguém mais se lembrava - seu dono, assim como a irmã, não era muito sociável com animais, e o marido e a filha eram indiferentes ao velho -, surgiam poças de xixi exatamente no meio do portão que o separavam da antiga família.
Lisbela sempre pensava nele como no cachorro abandonado. Ele não havia sido efetivamente abandonado, é claro. Era alimentado com a ração do gato da filha, e agraciado com pedaços de pão esporádicos que ganhava de Lisbela, a cada quatro meses e meio era recolhido em casa na hora do almoço e devolvido ao entardecer completamente pelado e sem pulgas.
Tex parecia aquela bola velha que ficava no quintal, vez ou outra, quando tomavam ciência dela, quem quer que fosse, dava uma rebatida no muro e tentava uma embaixadinha. Tex era aquela bola que estava sempre ali, invisível à mente ocupada, inconveniente ao estranho medroso e companheiro à alma solitária.
Lisbela via em sua filha o cachorro imaginário que vivia sem suas memórias e se recuperava do atropelamento com ímpeto desmedido e sem direção. Rio Cordas havia cuspido em sua casa a sua obra mais prima de todas, seu zelo, seu esforço, sua alma. E ela se corroía em bile ao pensar que fora mestre-de-obras de todo o acontecido. Ela não sabia o que tinha se passado com sua cria na cidade do pecado, mas seu ácido arrependimento não necessitava de porques para queimar.
Ela estava sublime, andando pela casa, conversando alegremente, pensava que, com o marido e a filha, mas, na verdade, sozinha. E tentava não demonstrar em absoluto sua alegria e animação com as noites de sono que teria pela frente com sua filha debaixo do seu teto, em respeito à resolução que tomara por conta própria.
Sua filha, sempre tão libertária e revoltosa, não iria mais viajar para a cidade do pecado. Amanhã poderia ser segunda, Lisbela levantaria animada com os trabalhos domésticos do dia e agraciaria Tex com um pedaço de pão velho.
Ela só se deitou para dormir depois que a resolução havia sido completamente firmada pela desolação da filha, estendeu o primeiro cobertor, branco com listras azuis, e se deitou.
Chamou pela filha da cama. E a pediu encarecidamente para que a cobrisse.
Quieta para que a mãe não percebesse seu estado alterado e encarasse seu silêncio como pesar pelos planos desfeitos, ela estendeu a segunda coberta, mais velha que ela mesma e só retirada do armário em tempos gélidos.
  • Quando eu morrer e estiver para ser enterrada, eu quero estar de batom... - comentou Lisbela, tentando fazer graça para a filha.
  • Ah é? Qual cor? Vermelho, roxo, rosa? - riu a filha, essas tentativas da sua mãe eram tão absurdamente raras que arrancavam risos de alegria e não de graça.
  • Rosa, bem clarinho. - respondeu ela, como se passasse um batom invisível nos lábios.
  • Blush? Sombra? - desdenhou a outra.
  • Não. Blush, não. Carrega demais. Quero só esse protetor que acabei de passar. Ele da um tom saudável pra pele. - respondeu ela, desencavando o protetor dos cobertores dobrados ao lado.
  • Ah, sim, pode deixar. - comentou a filha, risonha, enquanto estendia a terceira coberta, super fina, surpreendentemente quente e dificílima de dobrar, por cima da mãe.
Ela estava há algumas semanas sem pintar a raiz branca do cabelo que crescia implacavelmente com o passar dos seus quarenta e nove anos. Seu cabelo, que levara uma vida inteira para crescer até os ombros, exibia uma cor de ameixa cintilante e os fios brancos brilhavam e reluziam como mechas de prata. Seu rosto inteiro havia se iluminado com aquela ousadia que temia ser incoerente e não usual para sua idade. Somente agora, após vinte e cinco anos, toda uma vida, gasta em devoção à família, ela havia começado a tirar o tempo para ponderar sobre si mesma, sobre o que sempre quis e o que conseguiu. Sua alma calejada falava através do seu olhar sábio e acuado, leitoso pelos calos que sofrera; e através das rugas que chegaram mansamente e já começavam a formar um finco permanente entre as duas negras sobrancelhas de águia.
  • E tem que tirar minhas cutículas! - enquanto a filha saía e apagava luz.
  • Ah, sim, sem problemas. Não esquecerei nunca das suas cutículas! - desdenhou a filha enquanto entrava no próprio quarto e fechava a porta.
  • Mas sem esmalte! Cutículas sem esmalte! - ela ouviu Lisbela gritar pela última fresta.

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